No início de junho um professor de surf foi acusado injustamente por um casal de ter furtado uma bicicleta, no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Segundo Matheus Ribeiro, que é negro, o seu caso deveria ser enquadrado como crime de racismo. A cena despertou debate e evidenciou, assim como em outras situações no país, algo ainda muito comum: a discriminação em decorrência da cor da pele. Diante desse cenário, senadores lembraram o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado neste sábado (3), pedindo o fim do preconceito e maior participação do Legislativo na interlocução com os demais Poderes e com a sociedade civil para promover a conscientização contra atos discriminatórios e avanços na legislação.
A data é uma referência à aprovação, pelo Congresso, da Lei Afonso Arinos (Lei 1.930, de 1951), que tornou contravenção penal o racismo. A norma, que completa 70 anos, é considerada a primeira contra o racismo no Brasil, hoje crime inafiançável. Ainda em 1985, outra modificação passou a considerar a prática racista como crime inafiançável e a pena foi ampliada para até cinco anos de prisão.
De lá para cá, outras iniciativas foram efetivadas pelo Senado e pelo Congresso Nacional com o objetivo de se avançar na educação e punição contra atitudes de ódio motivadas pelo preconceito racial. Entre elas a promulgação, no início deste ano, do decreto (Decreto Legislativo 1, de 2021) que aprova a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância referendado em 2013, na Guatemala, durante encontro da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Também em 2021 o Senado criou a Frente Parlamentar Mista Antirracismo para amplificar os debates no sentido de sugerir políticas públicas e leis que contribuam para alterar esse quadro, aperfeiçoar os instrumentos do Estado e promover a maior conscientização da sociedade civil. A ideia foi apresentada pelo senador Paulo Paim (PT-RS) que, com a participação de senadores e deputados, vai acompanhar políticas e ações que envolvam o combate ao racismo e à desigualdade racial e a tramitação de matérias que tratem do assunto no Congresso Nacional. Além disso, levarão essa defesa para outros setores e Poderes no país e no exterior.
Agravantes
Em outra frente, os senadores aprovaram, em novembro do ano passado, o projeto (PLS 787/2015), também do senador Paulo Paim, que inclui no Código Penal a previsão de agravantes aos crimes praticados por motivo de racismo. Ou seja, na hora de aplicar a pena, um juiz poderá agravá-la em relação ao que prevê a lei. Aprovada em novembro de 2020 pelos senadores, a matéria aguarda análise na Câmara dos Deputados.
Apesar desse esforço, senadores observam que, seja no esporte ou no mercado de trabalho, nas ruas e no dia a dia do brasileiro, a discriminação racial e o preconceito estrutural ainda são persistentes. Na avaliação do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), esses tipos de manifestações mostram “a violência cotidiana da forte desigualdade racial no Brasil”, evidenciando a necessidade de combater retrocessos e manter o debate na agenda nacional.
— Precisamos continuar lutando para reverter esse quadro com uma atuação concertada da sociedade brasileira para reformar leis, instituições e políticas públicas. Nossa luta, em tempos de governo obscurantista e negacionista, é por evitar a destruição das políticas reparatórias e afirmativas que, nos governos progressistas recentes, retiraram a população negra da invisibilidade — defendeu.
A mesma pesquisa ainda mostrou que a população ainda ocupa postos de trabalho mais precários e são minoria em áreas que exigem maior qualificação como informática (31%), arquitetura e engenharia (26,9%) e em cargos de gestão empresarial (23,6%).Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para medição das políticas de inclusão da população negra na sociedade, tomando como referência o ano de 2019, o rendimento médio mensal dos brancos foi 56,6% a mais que o da população negra. Quase não se constatou nenhuma mudança com os indicativos de 2012 (quando a pesquisa começou a ser feita) que era de 57,3%.
Para Paim, que ao longo dos seus 33 anos de vida pública sempre se dedicou a questão racial e afirma sentir na pele o efeito de ações discriminatórias e o racismo estrutural no país, o combate à discriminação deve ocupar todos os ambientes da sociedade com o legislativo assumindo protagonismo nessa discussão.
— Acredito que o legislativo tem grande influência nessa luta antirracista. Recentemente, uma pesquisadora divulgou dados sobre a queda na desigualdade no ensino superior promovida pela Lei de Cotas. Motivo que nos faz acreditar que a aprovação de proposições legislativas influencia sobremaneira nos rumos que desejamos para sociedade, tornando-a mais igualitária e humana. Esta é uma missão destinada a todos, mas o Congresso tem papel relevante a cumprir — ressaltou Paim que é autor do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e responsável por apresentar o pedido de criação da Frente Parlamentar Mista Antirracismo.
O estudo o qual Paim fez referência foi realizado pela pesquisadora Tatiana Dias Silva, autora de pesquisa sobre ação afirmativa e população negra na educação superior, publicada em agosto de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A partir dos dados do IBGE, o trabalho indica que entre 2010 e 2019 o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%. Os negros chegaram a 38,15% do total de matriculados, percentual ainda abaixo de sua representatividade no conjunto da população — 56%.
País racista
Ainda de acordo com um estudo publicado em 2020 pelo Instituto Paraná Pesquisas, 61% dos entrevistados admitiram que o Brasil é um país racista, enquanto 34% negaram o problema. Em relação a essa constatação, Paim alertou que apenas 9,4% dos brasileiros se autodeclaram negros, quando dados do IBGE indicam que 54% da população é negra.
Embora, pela primeira vez, os negros sejam maioria no ensino superior público brasileiro, o Atlas da Violência 2020 trouxe outro dado alarmante: a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Ao todo, os negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados na década analisada. Na visão de Paim, os números refletem a realidade. Os negros ainda são minoria nas posições de liderança no mercado de trabalho, entre os representantes políticos no Legislativo e continuam sendo assassinados e vítimas de agressões em razão da cor da pele.as da Violência 2020 trouxe outro dado alarmante: a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Ao todo, os negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados na década analisada.
— O Brasil tem uma dívida histórica com a população negra. São anos e anos de práticas históricas, sociais e culturais de discriminação étnica. É preciso combater esse racismo estrutural. Um verdadeiro apartheid que, lamentavelmente, ainda ocupa espaço na nossa sociedade e faz vítimas todos os dias, em todos os ambientes, e em todas as classes sociais. Diariamente, ouvimos relatos de casos em que matam, acusam e humilham pessoas por sua cor de pele. Eu sempre me faço esta pergunta: quantos mais terão de morrer para o Brasil compreender que somos todos iguais, brancos, negros e índios? — questionou.
Projetos
Algumas sugestões de mudança na legislação foram apresentadas no Senado na tentativa de reduzir a discriminação racial e punir mais severamente quem ainda insiste em cometer esse tipo de crime. É o caso do PLS 42/2016, que aumenta em um terço a pena para quem cometer crime de injúria de natureza racial ou relacionada à condição de pessoa com deficiência contra criança ou adolescente. O projeto, do senador Telmário Mota (Pros-RR) está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e aguarda designação de relator.
Outro projeto em análise no Senado, ainda sem relator, é o PL 1.044/2020 , do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que altera a Lei do Racismo para aumentar as penas para fabricação, venda ou veiculação de símbolos nazistas. A pena máxima, que atualmente chega a cinco anos, pode ir para oito anos. O texto também inclui na lei o aumento de pena para quem negar a existência do Holocausto, promover propaganda neonazista ou fizer apologia ao nazismo. A punição vai de quatro a oito anos.
Também aguarda análise dos senadores, o PL 4.373/2020, do senador Paulo Paim, que prevê a inclusão do crime de injúria racial na Lei nº 7.716, de 1989, equiparando-o ao crime de racismo. Além disso, o projeto aumenta a pena para a injúria racial, que passa a ser de dois a cinco anos de reclusão e multa. Pelo texto atual do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 1940), quem for responsabilizado pela prática desse tipo de crime poderá ser condenado com a pena de reclusão de um a três anos, além da multa.
Ainda em relação a injúria racial, o senador Fabiano Contarato também apresentou o PL 4.218/2020 para aumenta a pena para este tipo de crime. O texto prevê reclusão de dois a seis anos e multa e cria um programa de reeducação do agressor.
Polícias
Após o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro espancado por dois seguranças de empresa contratada pela rede de supermercados Carrefour, Contarato também apresentou o que determina a inclusão, em cursos de capacitação de agentes de segurança pública e privada, de conteúdos relacionados a direitos humanos e combate ao racismo, à violência de gênero, à homofobia e outras formas de discriminação.
Os cursos destinados à formação e ao aperfeiçoamento de agentes de segurança incluirão conteúdos relacionados aos direitos humanos, liberdades fundamentais e princípios democráticos. Também haverá conteúdos de combate ao racismo, à violência de gênero, ao preconceito por orientação sexual e identidade de gênero, à xenofobia, à intolerância religiosa e ao preconceito contra pessoas com necessidades especiais.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Fonte: Agência Senado