O Brasil é o segundo país no mundo onde as pessoas mais usam compulsivamente o celular (perde só para a Africa do Sul), e a ciência já concluiu sobre diversos problemas que o uso exagerado, beirando a patologia, pode causar numa pessoa. Esse foi o foco da audiência pública que a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) realizou nesta sexta-feira (20), quando ouviu psiquiatras e representantes do governo sobre o tema.
A reunião foi conduzida pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE), que apresentou dados de pesquisas apontando a “epidemia” de vício nos aparelhos móveis que acomete parcela expressiva da população brasileira.
— Segundo a ComScore (empresa de análise de dados na internet), mais de 170 milhões de brasileiros participam regulamente das redes, quase 80% da população. Embora as redes proporcionem inúmeros benefícios, elas também têm efeitos negativos. Estudos já relacionam o uso excessivo a problemas de saúde. A imposição de modelos de estética pessoal e estilos de vida, por exemplo, é relacionada a problemas psicológicos, como a tendência a desenvolver depressão. Entre 2020 e 2022, houve um aumento de 31% do tempo médio que os brasileiros passam nas redes. A média já chega a 46 horas mensais — alertou o senador.
Girão também citou um estudo recente da Unesco, chamado Tecnologia da educação: uma ferramenta a serviço de quem?, em que a agência da ONU demostra sua preocupação com a massificação do uso de celulares nas escolas. Esse ponto também foi abordado pelo psiquiatra Cristiano Abreu, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
— A Unesco conclui taxativamente que a tecnologia na escola, até hoje, não prestou nenhum benefício, muito pelo contrário. Mas o que vemos aqui no Brasil? Os gestores incluindo essas tecnologias na escola, de forma cada vez mais precoce — lamentou.
Abreu defendeu que seja criado no Brasil o Conselho Superior da Internet, reunindo gestores, empresas, especialistas e usuários, visando análise de dados, fomento de pesquisas, definição de políticas públicas e desenvolvimento de campanhas de conscientização com foco no bem-estar da população, no que tange aos malefícios do uso excessivo de novas tecnologias.
Já o uso do celular e de outras tecnologias no ambiente educacional foi defendido por Lourival Martins, que representou o Ministério da Educação. Para ele, a presença de professores e de outros profissionais devidamente capacitados para uma “abordagem mediada” pode ser uma ferramenta positiva, visando justamente conscientizar jovens e adolescentes para que usem os celulares de forma mais educativa, produtiva e consciente.
Maria Aparecida Cina, chefe do Departamento de Saúde Digital no Ministério da Saúde, disse que a pasta criará um grupo de trabalho voltado ao desenvolvimento de ações e de campanhas educativas sobre o uso otimizado do celular pela população. Esse grupo também poderá propor políticas e projetos legislativos. Girão anunciou que pedirá ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que a Casa seja representada nesse grupo de trabalho.
Uso abusivo e problemas de saúde
Mais dados sobre o uso abusivo do celular no Brasil e possíveis relações com o desenvolvimento de graves problemas de saúde foram trazidos pelo psiquiatra Cristiano Abreu.
— No mundo, o uso diário médio do celular gira em torno de 6h30, mas no Brasil a média já chega a 9h30. O brasileiro está passando 142 dias por ano com a cara na tela. Uma pesquisa suíça comprovou que o uso excessivo do celular em adolescentes tem levado à perda de foco entre eles. Uma outra pesquisa do Instituto Global de Barcelona, que acompanhou 84 mil grávidas e depois o desenvolvimento das crianças nos sete anos seguintes, detectou que o relato das mães que usaram mais o celular resultou num número maior de crianças com TDAH (transtorno do déficit de atenção). A conclusão é que a radiação dos celulares pode ter alterado a expressão gênica dos fetos. A pesquisa suíça também ligou os problemas cognitivos nos adolescentes à radiação — disse.
Abreu acrescentou que diversos estudos do Instituto Nacional de Saúde dos EUA já correlacionaram o uso excessivo do celular à possibilidade do surgimento de câncer na cabeça.
Henrique Bottura, do Instituto de Psiquiatria Paulista (IPP), apoia que o Ministério de Saúde crie um grupo de trabalho visando a adoção de políticas contra o vício em celulares. Com base em estudos de diversas instituições internacionais, Bottura apontou o consenso de que esse vício se relaciona a distúrbios no sono, privação de contato social, exposição a conteúdos inapropriados por crianças e adolescentes, sedentarismo e problemas financeiros, que se dão devido ao desenvolvimento de compulsões por sites de apostas (bets) e à exposição a golpes pela internet, inclusive redes sociais, dentre outras razões.
Para Bottura, o eventual GT do ministério deve também se debruçar sobre a criação de um código de ética dos jogos online, que proíba expressamente apostas em games, questão que tem envolvido muitos adolescentes no Brasil. Ele também defende que seja proibido que menores de idade apostem nas bets que se baseiam na previsão do resultado de jogos de futebol e de outros esportes. Por fim, o psiquiatra ressaltou que tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto o Diagnóstico de Saúde Mental (DSM-5 — documento da psiquiatria dos EUA) já reconhecem o vício em jogos online e outros comportamentos compulsivos semelhantes como patologias de transtorno mental.
— E levam-se anos, até décadas, para que qualquer psicopatologia estudada possa ser incluída nos manuais diagnósticos mais rigorosos — alertou.
Daniel Spritzer, do Hospital Psiquiátrico São Pedro, apresentou estudos correlacionando o uso excessivo do celular ao desenvolvimento de ansiedade patológica. E Allan Carvalho, do Instituto de Mães, entende que o poder público precisa estar mais atento ao “papel nefasto” que influencers contratados por sites de apostas têm cumprido, ao induzirem jovens a ficarem viciados nessas apostas. Ele criticou anida a massificação do uso de smartphones por crianças.
— O que vemos hoje é que as crianças chegam às creches e pré-escolas já viciadas no celular, o que causa inúmeras dificuldades às professoras e atendentes. Não é fácil o desmame desse vício, as crianças ficam muito irritadas quando são afastadas do celular, porque o vício vem de casa. Os próprios pais preferem que as crianças passem horas no celular, porque entendem que dá menos trabalho — constatou.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Fonte: Agência Senado