A cada dia, Marlla Costa, de 40 anos, tem reencontros marcados consigo mesma. São visões doloridas do passado. Lembranças da infância e da adolescência, dos abusos sexuais que sofreu, da dependência química, inclusive do crack já na vida adulta. Das histórias de violências, estupro, quando viveu em situação de rua. O racismo a rodeou por todos os lados.
Hoje, após uma incrível história de reviravolta, a agora conselheira tutelar de Arniqueiras, no Distrito Federal, enxerga o próprio passado em outras pessoas. “Eu fui abusada quando criança. Cresci em uma família disfuncional”.
Ela se vê em quem sofre, como se carregasse um espelho translúcido. Ela se enxerga na menina, na moça, na mulher, na mãe. Só que, muito mais do que sentir a dor do passado, ela trabalha.
“Eu encontro ‘Marllas’ em várias situações na minha vida. E esse encontro me faz mais forte. Não tenho tempo para estar fragilizada diante de situações que precisam ser resolvidas. Quando cheguei ao conselho tutelar, eu já vim curada do meu passado”, afirmou a conselheira em entrevista à Agência Brasil.
Não há tempo para chorar o passado. A missão do conselheiro tutelar, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prevê ações legais e imediatas para garantir à infância a proteção diária.
Inclusive, para atuar no conselho tutelar, é necessário concorrer a um mandato de quatro anos. Em 2023, as eleições, que ocorrem em cada cidade, estão marcadas para o dia 1º de outubro. O voto é facultativo e pessoas acima dos 16 anos de idade podem escolher o representante de sua comunidade no conselho. Cinco são eleitos por município.
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Participação
O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania explica que é necessário estimular a participação comunitária nessa escolha. Segundo Diego Bezerra Alves, coordenador de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos do ministério, o papel do Conselho Tutelar é ser um garantidor de direitos da convivência familiar e comunitária.
“A preservação dos laços familiares das crianças deve ser a prioridade. A retirada emergencial de uma criança da família é uma exceção, o último caso, e com a validação da Justiça”.
O coordenador aponta que a representação está relacionada com a confiança e a legitimidade da comunidade. “A pessoa representante da comunidade pode melhor atender as crianças e as famílias, e orientar a rede de atendimento. Mas existe o desafio de fazer com que haja maior reconhecimento e valorização desse trabalho pela sociedade”.
Para concorrer, a pessoa tem que residir no município onde pretende ser eleito, ser maior de 21 anos de idade e com idoneidade moral. “É muito importante que essas pessoas já tenham experiência com a garantia dos direitos da criança e do adolescente. Pessoas que tenham capacidade técnica além do seu senso comum, de crenças religiosas ou políticas”.
Diego Bezerra Alves afirma que o atual governo federal tem investido na capacitação das pessoas que ocupam os conselhos tutelares com a Escola Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, uma unidade de formação online com cursos gratuitos na área. Os salários dos conselheiros variam de acordo com a capacidade do município, mas os profissionais eleitos devem, segundo o governo federal, agir com independência para fiscalizar a aplicação dos direitos.
No caso de Marlla Costa, ela não vai poder concorrer desta vez porque teve problema na entrega de documentos. Não só gostou do serviço como se encontrou. A conselheira é casada com um companheiro de vida que encontrou, em 2011, quando estava em situação de rua. Os dois se ajudaram e reviraram o destino. Hoje tem dois filhos. Depois de recuperada, foi para a faculdade e trabalhou como voluntária em um instituto de proteção de crianças em situação de vulnerabilidade.
Na pele
Ela se formou em serviço social e embarcou em pós-graduação. “Eu senti também a necessidade de continuar estudando leis, artigos e a função do conselho tutelar. Temos que buscar uma forma humanizada do atendimento da maioria das mães aqui, que são mães solo, mulheres negras e que também sofrem violência doméstica dos seus maridos e companheiros”. Violências que ela encontra também diariamente nas ruas.
Marlla, inclusive, foi a primeira vítima de racismo que registrou o crime depois que houve equiparação com injúria racial (entenda a lei https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/entenda-nova-lei-que-equipara-injuria-racial-ao-racismo). Foi no dia 13 janeiro que dois homens, após uma discussão de trânsito, a violentaram com palavras racistas e até puxões de cabelo. Os agressores foram presos em flagrante. “Eu trabalho com denúncias de pessoas violentadas. Tinha certeza de que não poderia me calar. Se eu não denunciasse, não poderia trabalhar no dia seguinte”.
Ela atende mulheres e crianças que a inspiram. “Inicialmente, eu não consegui pedir socorro quando eu estava nas drogas. Eu simplesmente fui me afundando. Quando eu consigo olhar aqui uma mãe pedindo ajuda porque o filho está nas drogas, eu posso conversar, eu posso falar, porque eu já estive nesse lugar”, conta.
Esse lugar de fala não tirou dela impactos a cada história que descobre, como de violências diversas contra crianças praticadas em casa, em outros ambientes, e também pelas instituições que deveriam proteger.
“Uma das nossas atribuições é requisitar serviços públicos na área da saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança, por exemplo. Nós podemos requisitar junto à autoridade judicial medidas diante de caso de qualquer descumprimento ou mesmo ameaça”. Para os futuros conselheiros tutelares, Marlla recomenda muita disposição, ouvidos e olhos atentos para esse trabalho tão especial. “É preciso estar sempre indignada e inconformada contra violências e injustiças”.
Fonte: Agência Brasil