Daquela viagem, as lembranças misturam-se para a pedagoga Rosinete Serrão. O cheiro do rio, o calor e a água que insistia em encharcar o barco a motor. Ela, aos 20 anos de idade, fazia uma viagem até uma comunidade ribeirinha na foz do Rio Amazonas, na cidade de Breves.
O percurso era para ensinar crianças de comunidades no Marajó a ler. Àquela altura, Rosinete estava ainda na escola, mas promover o estudo de quem mora distante era parte de sua alma. O que não esperava é que um cochilo ou uma distração a surpreenderia e mudaria a sua vida completamente.
Os gritos dos outros e depois o dela, as mãos ensanguentadas. Era a pele que encobria o seu rosto. O motor do barco puxou o cabelo dela e todo o seu couro cabeludo. As sobrancelhas também sumiram.
A professora Rosinete, naquele 18 de agosto de 1997, era mais uma vítima da violência do acidente do escalpelamento. Vinte e quatro anos depois, ela lembra que o caminho de recomeço foi longo, longe da família, em uma jornada que envolveu retomada de autoestima e de solidariedade. Hoje, aos 44 anos de idade, vive com duas filhas e marido em Macapá. A solidariedade, que a reergueu, surgiu em diferentes ondas.
“No Amapá, vim fazer o tratamento. Eram vários curativos por mês. Não voltei mais para a minha área ribeirinha. Assim, até hoje estou morando aqui. Foi muito difícil esse recomeço. Foi como se tivesse começando a vida do zero. Não tinha mais vaidade. Fiquei quatro anos isolada. Não queria ir a lugar nenhum”, recorda.
Foi na capital do Amapá que buscou tratamento e refúgio. Com o acidente, inicialmente, resolveu abandonar tudo, até os estudos. “Não tive condições psicológicas de continuar vivendo a vida de antes. Em Macapá, descobriu também que era necessária uma reviravolta.
“Antes, eu achava que aquilo só havia ocorrido comigo. Passei a conhecer outras pessoas.”
Foi pela rádio que ouvia rotineiramente onde resolveu que era necessário viver e se unir a outras mulheres que passavam pelo mesmo problema. “Com a rádio, conseguimos levar essa mensagem de conscientização sobre o escalpelamento por toda a Amazônia. A rádio que eu ouvia me ajudou muito nisso”, afirma.
Visibilidade
A rádio, pelo programa Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazônia, apresentou a ela o que antes lhe era invisível. “Não eram duas, três. Eram mais de 80 pessoas. Tenho paixão pela comunicação por rádio. É o meio de comunicação que escutava desde pequenina. Conheci a Mara Régia no movimento do combate ao escalpelamento. Ela estava nas conferências no estado do Amapá. A gente, em 2011, fez uma grande campanha de doação de cabelo, que nunca se encerrou e assim podemos ajudar outras pessoas que foram vítimas como eu.”
Ao ter a história revelada pelo programa Viva Maria, Rosinete passou a ser uma voz importante para contar as histórias sobre esse tipo de acidente e a dar visibilidade para as causas e consequências do escalpelamento, mobilizando associações e pessoas. Resolveu fazer cursos gratuitos, unir mulheres em vulnerabilidade diante de projetos organizados para empreender e promover uma ação transformadora.
“Não só descobrimos que existiam outras mulheres, como também, ao ser entrevistada pelo Viva Maria, passamos a inspirar mulheres a não pararem diante do acidente. Através da nossa luta e empoderamento, podemos virar autônomas, empreendedoras e com possibilidade de gerar qualidade de vida para a gente e nossa família”.
Valorização da vida
Rosinete resolveu voltar para a escola, terminou o ensino fundamental e médio e chegou a se formar em pedagogia. O antigo sonho com a educação tomava forma novamente. “Recomecei a minha vida depois que conheci outras vítimas e pude espalhar informação. De repente, éramos 89. Vi que eu não era, nem estava sozinha. Cada uma de um grau diferente de gravidade.”
Era necessário reivindicar direitos e buscar saídas. “Foi assim que me empoderei”. O mundo se abriu ao valorizar mais a si mesma. “Pensei que, diante do meu problema, poderia colocar uma peruca. Pessoas com necessidades especiais também me inspiraram”. Ela pôde verificar que, enquanto olhava apenas para os próprios problemas, não valorizava o que estava a sua volta.
“Eu pensava só na minha história. Eu comecei a olhar para pessoas que já nasceram sem andar. Eu tinha que fazer algo.”
Como meta, participou de cursos e palestras de empreeendedorismo. “Tenho cursos, por exemplo, de reaproveitamento de alimentos até corte e costura. Isso me motivou muito. Aprendi a falar em público. Eu não falava nada. Eu jamais aceitaria dar uma entrevista há uns anos”. O Viva Maria foi uma primeira experiência, pela rádio, de verificar que a voz poderia soar alto.
Ela se formou em pedagogia e quer ajudar crianças e adolescentes. “Eu estou pretendendo dar aula para crianças aqui na minha comunidade. Estou falando com alguns parceiros. Estou buscando materiais pedagógicos. Com a pandemia, a situação ficou bastante difícil”. Quer ensinar também adultos a escrever ou mesmo a mexer na internet e no celular. “Estou com esse projeto de dar aulas aqui no meu bairro, o Jardim Marco Zero.” Um novo marco zero de vida.
Mundo das Rosas
Entre os novos marcos, Rosinete criou a organização não governamental (ONG) Movimento Mundo das Rosas para ajudar mulheres que sofrem violência ou outros tipos de vulnerabilidade. “Em 2015, eu fazia ação de corte de cabelo para filhos dessas mulheres. Agora, estou com esse projeto nesse novo cenário de tanta dificuldade em que pessoas perderam emprego e estão endividadas.”
A entidade dela foi uma das selecionadas pelo Instituto Rede Mulher Empreendedora, no qual ela aprendeu a organizar a vida econômica do seu lugar. “Quero trabalhar com as mulheres da minha comunidade temas de economia colaborativa. Elas já vendem algumas coisas, de alimentação a vestuário. Agora, elas precisam aparecer. Sei que posso ser uma porta de entrada para elas.”
Outra porta chega pelas ondas do rádio. “No Programa Viva Maria, tenho tido espaço para falar de empreendedorismo para as mulheres. A rádio é uma porta de entrada da mudança. O programa leva essa informação para outras mulheres”
Escalpelamento
Os números de acidentes mantêm uma média anual em estados como Pará e Amapá, o que indica que o problema ainda está longe de ser sanado, ainda que a solução seja aparentemente simples, segundo avalia a Marinha. No primeiro ano de divulgação, foram 11 casos. Em 2009, o maior número nesses últimos 15 anos: 20 acidentes. Em 2019, 13. No ano passado, dez. E, neste ano, até agora, oito. A Marinha destaca que as crianças representam 60% das vítimas.
A Capitania dos Portos faz a colocação gratuita do kit de proteção no eixo do motor, o que evita acidentes como o que Rosinete sofreu. O medo de uma multa ou de eventuais outras punições afasta donos de embarcações. No entanto, os militares garantem que a busca é por conscientização. Por isso, os barqueiros são estimulados a resolver o problema que pode gerar uma tragédia. A colocação do kit é gratuita.
Rosinete está ansiosa para o dia em que a pandemia acabar e puder envolver mais a comunidade com a entidade que criou. O projeto Movimento Mundo das Rosas está atendendo algumas vítimas de escalpelamento. “Sempre busco alimentos para elas. Estou pensando em como ajudar mais.”
O nome da entidade foi inspirado em uma poesia escrita pelo marido de Rosinete, Clebison Magno. O rapaz também foi vítima de um acidente em barco, o que causou lesões em seu rosto. Os versos dele homenageiam as mulheres que buscam o recomeço: “As rosas serão de todas as cores. E a beleza de todas as cores. E a beleza de todas as flores. Um dia nem tudo serão rosas, pode esquecer. Porém as rosas serão tudo o que quiserem ser.”
https://www.youtube.com/watch?v=/Smi2iC5NRFU
Leia e ouça mais sobre escalpelamento no programa Tarde Nacional, da Rádio Nacional da Amazônia.
Fonte: Agência Brasil