“Uma bomba invisível”. É assim que o professor José Claudio Sousa Alves, do departamento de ciências sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), descreve as consequências para a população de operações policiais como a Operação Contenção, considerada a maior e mais letal dos últimos anos no Rio de Janeiro.
A operação, realizada na última terça-feira (28), nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, deixou ao menos 121 pessoas mortas, gerou pânico com tiroteios, fechamento de comércio, escolas e postos de saúde, com interdição das principais vias da cidade, rotas de transporte público alteradas e ônibus queimados. Corpos foram estendidos no meio da rua em meio a parentes e a toda uma comunidade horrorizada e em luto. As consequências seguirão sendo sentidas, adverte Alves.
“As pessoas ficam com diabetes, hipertensão, distúrbios emocionais, distúrbios mentais, não dormem, têm AVCs [acidente vascular cerebral], inúmeras complicações de saúde, problemas de visão, glaucoma. É uma bomba invisível”, diz o professor, que é referência em violência urbana e segurança pública.
Uma pesquisa conduzida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) tenta descrever esse cenário. O estudo comparou a situação de saúde de moradores de favelas expostas a um número maior de tiroteios envolvendo agentes do Estado com a de pessoas que vivem em comunidades mais tranquilas, com número menor de confrontos armados.
A pesquisa mostrou, por exemplo, que o risco de moradores de favelas mais expostas a tiroteios desenvolverem depressão e ansiedade é mais que duas vezes maior que o daqueles de outras comunidades. A probabilidade também é maior de apresentar quadros de insônia (73%) e hipertensão arterial (42%). Um terço dos moradores dessas comunidades também relatou sudorese, falta de sono, tremor e falta de ar durante os tiroteios.
A dirigente sindical Raimunda de Jesus foi uma das pessoas que participou da manifestação contra a Operação Contenção, realizada no Complexo da Penha na última sexta-feira (31).
“A forma que aconteceu aqui não acontece na Zona Sul, nas áreas mais ricas, mas lá também tem bandidos. Nós, que moramos na periferia, somos discriminados. Mas o Estado não pode nos ver como inimigos. O Estado tem que tratar e cuidar do seu povo, de toda a sua população”, afirmou.
Liliane Santos Rodrigues, moradora do Complexo do Alemão, também compareceu ao ato. Ela perdeu o filho Gabriel Santos Vieira, de 17 anos, há apenas seis meses. O jovem estava na garupa de uma moto por aplicativo, a caminho do trabalho, quando foi baleado com cinco tiros durante uma perseguição policial.
“Eu estou sentindo a dor dessas mães. Foi um baque muito grande ver que um rapaz foi morto no mesmo lugar em que o meu filho morreu. Tem três dias que eu não sei o que é dormir direito””
Complexos de favelas
De acordo com a Secretaria de Segurança do Rio Janeiro, os complexos do Alemão e da Penha são considerados o quartel general do Comando Vermelho, com lideranças de diversos estados.
“Ali, é o lugar onde vários donos de morro, várias lideranças de firmas locais do tráfico de drogas acabam morando. Os poucos que se encontram em liberdade ─ a maioria das lideranças do tráfico no Rio de Janeiro já se encontram presas e lideram tráfico a partir da prisão ─ é muito comum que morem, que tenham casas dentro do Complexo da Penha, do Complexo Alemão, onde há uma contenção armada que oferece maior resistência. Ou seja, há mais tempo para se esconder, para fugir, para mudar de casa, desde o início de uma operação policial até o seu final”, diz a coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), Carolina Grillo.
Esses locais, no entanto, não se restringem à criminalidade. Ali vivem mais de 110 mil pessoas, que são diretamente impactadas por operações policiais. Operações como esta, mesmo com as 113 prisões realizadas, com as mortes e apreensões, não afetam a estrutura do Comando Vermelho, mas impactam enormemente a população, avalia a pesquisadora.
“Quem serão impactados serão as famílias, as pessoas assassinadas, serão os moradores daquele território que ficaram traumatizados para sempre”, diz.
Comando Vermelho
A operação mirou no Comando Vermelho, organização criminosa que nasceu no sistema prisional do Rio de Janeiro no final dos anos 1970. “Ele está associado a condições do presídio no Caldeirão do Diabo, em Ilha Grande, a tortura, morte, tratamento absolutamente aviltante, como e não é diferente até os dias de hoje. O Comando Vermelho responde com uma capacidade organizativa que vai deslocar o crime do mundo do roubo a bancos para o mundo do tráfico de drogas, que é muito mais amplo e era uma forma organizativa. Esse Comando Vermelho, então, vem crescendo”, diz José Claudio Sousa Alves.
Segundo nota técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Comando Vermelho é apontado como a segunda maior organização criminosa do país, também presente em 24 estados e no Distrito Federal, além de manter conexões internacionais para o comércio de drogas e outras atividades.
Pesquisa do Geni e Instituto Fogo Cruzado mostrou que o Comando Vermelho foi a única facção criminosa a expandir seu controle territorial de 2022 para 2023 no Grande Rio. Com o aumento de 8,4%, a organização ultrapassou as milícias e passou a responder por 51,9% das áreas controladas por criminosos na região.
De acordo com o estudo, as milícias reduziram suas áreas em 19,3%, de 2022 para 2023, e passaram a responder por 38,9% dos territórios controlados por grupos criminosos. A pesquisa mostrou que o Comando Vermelho retomou a liderança de 242 km² que tinham sido perdidos para as milícias em 2021. Naquele ano, 46,5% das áreas sob controle criminoso pertenciam às milícias e 42,9% ao Comando Vermelho.
Os lugares onde a facção mais cresceu foram a Baixada Fluminense e o Leste Metropolitano. Já as milícias tiveram as maiores perdas na Baixada e na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Não à toa, o crime organizado se instala e prospera em territórios de população vulnerável. “Há uma oferta quase inesgotável de mão de obra para o trabalho criminoso, devido às muito precárias oportunidades oferecidas aos jovens no Brasil hoje em dia, devido às terríveis desigualdades sociais, que são estruturais no país”, diz Carolina Grillo.
População é vítima
A forma de operar do Comando Vermelho também mudou ao longo do tempo, deixando de lucrar apenas com a venda de drogas. Segundo José Claudio Sousa Alves, isso se deu principalmente a partir do contato com o modus operandi das milícias no Rio de Janeiro, que exploram os moradores dos territórios controlados, cobrando serviços e taxas.
Apesar de a operação ter apreendido toneladas de drogas – o total ainda não foi precisado –, o próprio secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, reconheceu que a droga não é a principal fonte de financiamento do crime organizado.
“A droga hoje é cerca de 10% a 15% do faturamento das facções. Ela enxergou que o território é sinônimo de receita, de dinheiro, exploração econômica. Justamente explorando tudo que tem no interior dele: internet, gás, energia elétrica, água, construções irregulares, extorsão de comerciantes no interior de comunidade, de moradores e etc. Então, é isso que o comando vermelho quer, justamente, explorar economicamente o território”, disse o secretário.
Combate ao crime
Tanto José Claudio Sousa Alves quanto Carolina Grillo defendem que as operações policiais não são a forma mais efetiva de combater o crime organizado. Para eles, a prova disso é que mesmo com as operações realizadas ao longo dos últimos anos, o crime organizado não perdeu território.
Segundo o estudo do Geni e Fogo Cruzado, 3.603.440 moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro estão em territórios sob domínio de milícias (29,2%). O Comando Vermelho tem hegemonia em uma área habitada por 2.981.982 moradores (24,2%); seguido do Terceiro Comando, com 445.626 (3,6%) e Amigo dos Amigos, com 48.232 (0,4%). Pouco mais de 4,4 milhões de fluminenses residem em bairros que ainda são alvo de disputa (36,2%).
“Existem outros elos estratégicos, cujo combate se dá de uma forma não violenta. Operações que desmantelaram estruturas, braços financeiros do PCC [Primeiro Comando da Capital], foram deflagradas sem nenhum tiro fosse disparado”, diz Carolina Grillo, citando a operação Carbono Oculto como exemplo.
Outro exemplo dado foi a operação deflagrada pela Polícia Federal que desarticulou, no Rio de Janeiro, uma organização criminosa especializada na produção, montagem e comércio ilegal de armas de fogo de uso restrito.
“Tem um efeito de desarmamento do crime organizado muito maior do que essas ações centradas no confronto, que têm um impacto gigantesco para a sociedade, traumatizam as crianças, vulnerabilizam uma série de famílias que ficam impedidas de trabalhar, impedidas de levar seus filhos para escola, submetidas a traumas irreparáveis, sem que nenhum resultado positivo de libertação dessas famílias em relação ao julgo desses grupos armados possa ser desfrutado”, diz a pesquisadora.
José Claudio Sousa Alves complementa: “Para onde vai essa grana toda do tráfico? Quem tá operando? É o pé de chinelo lá do Alemão? É o pobre vendedor no varejo? Para onde vai essa grana toda? Tá com ele mesmo? Não tá. É óbvio que não. Você tem estruturas muito mais amplas. Você tem estrutura internacional, hoje, do tráfico. Há condições de investigar. A Carbono Oculto nos mostra que isso é possível”, diz.
Outra linha de atuação possível é ofertar oportunidades às populações de favelas e áreas vulneráveis, sobretudo aos jovens, para que não integrem o crime organizado e fortaleçam as facções. “Não há propostas nem do atual governo, muito menos dos anteriores, em relação a essa massa de pessoas que não conseguem acessar mercado de trabalho, estão cada vez mais precarizados, há uma população que vive sem salário”, diz o professor.
Carolina Grillo destaca a importância do Pronasci Juventude, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem por objetivo prevenir as violências e a criminalidade associadas aos mercados ilegais de drogas. Os jovens recebem apoio para estudos, capacitação e inserção no mercado de trabalho.
*Colaborou Tâmara Freire.
Fonte: Agência Brasil
