Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que, entre as pessoas que sofreram agressões físicas ou psicológicas no ato da prisão, 96% são homens, 79,9% são pretos ou pardos, 71% não chegaram ao ensino médio e em 87% das vezes o agressor é policial militar. Por faixa etária, a maioria tem entre 18 e 25 anos (52,8%) e entre 26 e 40 anos (34,5%). Do total, 84,7% das vítimas afirmaram exercer alguma atividade profissional.
A pesquisa foi feita pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria e analisou o relato de 1.250 pessoas presas, submetidas a tortura e maus-tratos, entre junho de 2019 e agosto de 2020. O relatório foi divulgado hoje (17), no evento Pelo Fim da Tortura: o Impacto dos Relatos de Agressão nas Sentenças Criminais, com transmissão pelo canal da Defensoria no YouTube.
Este é o segundo relatório produzido pela Defensoria desde a criação do Protocolo de Prevenção e Combate à Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, que prevê a notificação obrigatória ao Nudedh dos casos registrados por defensores e defensoras públicos em todo o estado.
O primeiro relatório reuniu 931 denúncias de tratamentos desumanos praticados contra pessoas presas entre agosto de 2018 e maio de 2019, indicando uma média de três agressões por dia. Desse total, 96% das denúncias foram feitas durante a audiência de custódia. No ano passado, a Defensoria também havia apontado o racismo estrutural existente nos atos de prisão em flagrante no estado.
Vítimas
De acordo com o levantamento, apenas 20% das vítimas buscam medidas administrativas ou judiciais contra o Estado ou contra o agressor, mesmo com 90% sendo capazes de identificar os autores e 35% tendo lesões aparentes. As medidas administrativas solicitadas foram a instauração de investigação (227), o ajuizamento de ação indenizatória (185) e a representação por falta funcional (155).
Porém, mesmo que não haja menção a agressões na audiência de custódia, no interrogatório ou na fundamentação da sentença, em 70% dos casos o juiz responsável tomou conhecimento da alegação do acusado. A coordenadora do estudo, Carolina Haber, destaca que, mesmo assim, em 80% dos casos em que há lesões visíveis, a agressão não é mencionada na sentença.
“A partir da leitura dos termos de audiência de custódia e das sentenças, buscamos identificar todos os casos em que há o registro do relato de agressão para ter certeza que, de fato, o juiz tomou conhecimento dessa ocorrência. Porém, o que se percebe é que esse relato vai desaparecendo ao longo do processo e acaba sendo considerado irrelevante para o julgamento, não sendo tomada nenhuma providência mais concreta”.
Entre os relatos que chegaram ao Nudedh, 96,1% dos casos informaram sobre agressões físicas e em 28,5% dos casos houve agressão psicológica. Chutes (477), socos (438) e tapa na cara (337) foram os tipos de agressão mais mencionados pelos presos. Há registro também de pauladas, coronhadas, queimaduras, enforcamentos e espancamentos. Entre as agressões psicológicas, a mais citada foi a ameaça de morte (148).
Crimes
Dos casos analisados pela Defensoria, que haviam sido julgados em primeira instância, 56% foram baseados na Lei de Drogas. Em 75% das condenações o juiz menciona a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, bem como em cerca de 14,6% das prisões por roubo, que respondem por 31% das condenações. O normativo legitima a palavra dos policiais para embasar a condenação, na ausência de outras testemunhas.
Harber indica ainda que quando os relatos de agressão aparecem na sentença, eles são utilizados para desqualificar a versão do acusado ou afirmar que o laudo não confirmou as agressões alegadas. Para a coordenadora, isso aprofunda a falta de providências com relação às agressões sofridas pelos presos, já constatada durante as audiências de custódia.
“Identificando que, na maioria das vezes, ocorre o encaminhamento a outros órgãos responsáveis pela apuração das situações relatadas em audiência, como a Corregedoria da Polícia Militar ou a Promotoria de Investigação Penal junto à Auditoria Militar. As agressões sofridas, no entanto, não são consideradas para relaxar a prisão ou conceder a liberdade provisória. Nesse segundo relatório, a proposta foi verificar se o juízo natural tomava alguma medida em relação às agressões, mas de fato, nada é feito”.
A coordenadora do trabalho destaca que o uso da Súmula 70 está levando ao cárcere uma maioria de jovens negros e pobres, em nome da chamada “guerra às drogas”, legitimando um sistema penal seletivo e que não se esforça para investigar os abusos e excessos praticados pelos agentes do Estado.
“A pessoa presa em flagrante por tráfico de drogas, ainda que negue a prática do delito e/ou alegue ter sido submetida a agressões no momento da prisão, ou mesmo tortura, sofre violações de direitos ao não ter suas afirmações levadas em consideração, na maioria das vezes. É preciso um grande esforço da defesa para dar credibilidade às denúncias de maus-tratos, bem como para provar a inocência daqueles envolvidos com denúncias relacionadas a crimes da Lei de Drogas”.
A maior parte dos registros é anterior a março de 2020, quando audiências de custódia foram suspensas por causa da pandemia de covid-19.
Outro lado
Procurada, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar disse que a “corporação não comentará relatório baseado apenas na oitiva dos presos em audiência de custódia, sem qualquer comprovação técnica em exame de corpo de delito”.
Em nota, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) diz que desconhece estes dados e que “não foi comunicado oficialmente do relatório citado, de como ele foi feito e em que período se baseou”.
Ainda segundo o TJRJ, os relatos de maus tratos ou de qualquer excesso são encaminhados ao Ministério Público do estado (MPRJ) e às corregedorias da polícia Civil ou Militar “dependendo do caso, que são os órgãos competentes para a apuração nessas hipóteses”.
E que as audiências de custódia têm por uma das finalidades a de apurar acerca de eventual prática de tortura ou maus tratos no ato prisional, logo após a prisão.
Finaliza o TJRJ, “nas audiências realizadas na Central de Custódia de Benfica, em torno de 30% dos custodiados (presos) relatam a prática de tortura ou maus tratos no ato prisional e, sempre que há relato nesse sentido, o juiz que preside a audiência determina a expedição de ofícios para os órgãos competentes para a apuração da prática de violência relatada, cabendo a tais órgãos a partir de então a efetiva apuração dos relatos”.
* Matéria alterada às 17h55 para acrescentar o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)
Fonte: Agência Brasil